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Entenda o cenário da tramitação do projeto de lei que tira o monopólio da Petrobras sobre o setor no Brasil

Por Victor Ohana para a CartaCapital.

Está em tramitação no Congresso Nacional um polêmico projeto que muda a legislação sobre uma série de atividades relativas ao mercado de gás natural no Brasil. Defendida pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados nessa terça-feira 1 e segue para análise do Senado.

Batizado de Nova Lei do Gás, o PL 6.407/2013 tem o objetivo de aumentar a participação de empresas privadas no mercado de gás natural no Brasil, hoje controlado pela Petrobras. Segundo o governo, o estímulo à concorrência vai reduzir o preço para os consumidores, principalmente para as indústrias e termelétricas.

A mudança concreta está na atividade de transporte de gás natural. Atualmente, a operação ocorre sob o regime de concessão. Com a nova lei, o regime para a ser de autorização.

No sistema de concessão, a empresa privada que se interessa em participar desse mercado precisa vencer um leilão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Já no sistema de autorização, a empresa precisará apenas apresentar um projeto e aguardar o aval da agência.

O teor do projeto não é consenso entre partidos e organizações.

Em 29 de agosto, partidos da oposição votaram contra o regime de urgência aplicado ao tema no Congresso, mas foram derrotados.

Sindicatos e entidades do setor também criticam o projeto, como a Federação Única dos Petroleiros (FUP). Do outro lado, mais de 60 entidades da indústria assinaram a carta aberta “Gás para sair da crise” em defesa da nova lei, como a Confederação Nacional da Indústria (CNI).

Entenda o problema no mercado de gás natural

Para entender a importância do setor de gás natural, é preciso começar pelo meio ambiente. Considerado um “combustível limpo”, o gás natural é menos poluente que a gasolina e o óleo diesel, e seu uso é mais barato em combustíveis de veículos. Portanto, o tema é parte fundamental de qualquer estratégia para uma transição energética comprometida com benefícios ecológicos.

A produção de gás natural no Brasil começou em 1941, de forma tímida.

De acordo com um relatório publicado neste ano pela ANP, o setor atingia a marca de 170 mil metros cúbicos por dia na década de 1950. Em 1970, houve crescimento discreto, mas só 50 anos depois foi alcançado o patamar atual da produção bruta de gás: aproximadamente 140 milhões de metros cúbicos por dia.

A tendência é de aumento na produção de gás natural, principalmente após as descobertas do pré-sal, confirmadas pela Petrobras em 2006 e descritas como uma das mais importantes daquela década: camadas ultraprofundas nos mares brasileiros, com grandes reservas de petróleo e gás natural.

Com essas descobertas, a ANP prevê um potencial na produção de gás natural de 253 milhões de metros cúbicos por dia em 2029.

Porém, a dificuldade está na infraestrutura existente para explorar essas riquezas. Segundo a ANP, 80% da produção de gás natural no Brasil é de “gás associado”, ou seja, um tipo de gás que está misturado com o petróleo. Apenas 20% é de “gás não-associado”,  livre do óleo e da água no reservatório. Portanto, é necessário fazer uma espécie de processamento para possibilitar essa produção.

Outra fase importante da exploração do gás natural é o transporte, e é exatamente disso que trata a Lei do Gás em tramitação. Quase a totalidade do gás natural no Brasil é retirado do mar, o que se chama de “origem offshore”. Para trazê-lo à terra, é preciso haver estruturas em formas de tubulações que façam esse transporte. Essas tubulações levam o nome de gasodutos.

Mas o problema é que o Brasil, embora tenha um enorme potencial para explorar essa riqueza, tem poucos gasodutos.

Segundo o CBIE – Centro Brasileiro de Infraestrutura, a malha brasileira de gasodutos tem 45 mil quilômetros. No entanto, a malha dutoviária específica para fazer o transporte do gás natural é de apenas 9,5 mil quilômetros, enquanto a malha de distribuição do gás natural é de 35,5 mil quilômetros.

Esse número é pequeno se comparado a outros países. A Argentina, segundo o CBIE, tem uma malha de gasodutos de transporte de 16 mil quilômetros, praticamente o dobro da brasileira. Já os Estados Unidos têm uma malha de 485 mil quilômetros de gasodutos de transporte, segundo dados do Ministério do Meio Ambiente.

Além disso, especialistas ressaltam que a malha brasileira é muito concentrada no seu litoral, com baixa capilaridade de distribuição no interior: das 5.570 cidades brasileiras, estima-se que apenas 470 possuem o serviço.

Na Argentina, por exemplo, os gasodutos são mais integrados com os locais no interior. Essa integração, no Brasil, evitaria a subutilização do gás natural na indústria em locais distantes das capitais litorâneas, mas isso requer ampliação nessa infraestrutura.

Os gasodutos existentes são controlados pela Petrobras. Para expandir a malha de transporte do gás natural, o governo aposta em facilitar a entrada de empresas privadas no setor, com a expectativa de atrair investimentos privados.

Petrobras controla setor de transporte do gás natural

Criada em 1953, a Petrobras nasceu com o papel de controlar a exploração, o refino e o transporte do petróleo brasileiro. Ao longo do tempo, a estatal aplicou investimentos em outros mercados, e o gás natural foi um deles.

Em junho de 2020, os campos da estatal foram responsáveis por cerca de 95% de todo o gás natural produzido no País, segundo boletim da ANP.

Porém, a partir do governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), em 2016, iniciou-se um processo de desinvestimentos na Petrobras. Esse processo permanece em curso, conforme Paulo Guedes já sinalizou várias vezes, com vistas na privatização da estatal.

Nesse contexto, em vez de a Petrobras seguir investindo na ampliação de sua vocação no mercado de gás natural, essa participação vem sendo reduzida. Entre os capítulos mais importantes do desmonte da Petrobras na área, está a venda de 90% da participação da estatal na Transportadora Associada de Gás (TAG). O percentual foi vendido para empresas estrangeiras, em processo concluído em 2019.

Ao mesmo tempo, multinacionais do exterior expressam cada vez mais interesse no setor de gás natural do Brasil. Conforme a Reuters já aventava em matéria de 2018, a anglo-holandesa Shell é uma das empresas que já demonstraram interesse em investir em novos projetos de gás natural no Brasil, por considerar os investimentos no campo como estratégicos.

Num programa de desinvestimentos da Petrobras no setor de gás natural, passa a fazer menos sentido manter o controle da estatal entre as plataformas de transporte do material. Como, de fato, a malha precisa ser ampliada, essa necessidade é utilizada como principal argumento para entregar essa função às empresas privadas.

O que dizem os defensores da Nova Lei do Gás

As associações industriais estão entre as principais defensoras da nova legislação porque elas compram o gás natural. Como a malha de gasodutos é pequena, o serviço de transporte fica mais caro, e esse custo reflete no preço pago por essas indústrias. A ampliação dessa malha, portanto, baratearia a compra.

Em carta aberta, essas entidades industriais argumentam que o gás natural é um insumo fundamental para diversos setores da economia, como alimentos, medicamentos, extração e tratamento de minérios, siderurgia, indústria química, vidros, cerâmica e geração de energia elétrica.

O texto destaca que o Brasil é dotado de uma riqueza imensa desse gás nas reservas terrestres e marítimas, e que em pouco tempo será possível dobrar a oferta de gás no mercado. Portanto, “por meio da introdução da efetiva concorrência”, tornar o preço deste insumo competitivo provocaria “efeito virtuoso e sustentável” na economia.

“A indústria do gás natural e dos produtos associados pode aumentar em 60 bilhões os investimentos no País, gerando mais de 4 milhões de empregos neste momento em que estamos precisando de um novo respiro para voltar a crescer”, diz a carta. “O projeto de lei tem as diretrizes necessárias para promover a competição e a redução sustentável do preço do gás, gerando todos os efeitos sociais e econômicos citados.”

A CNI diz que o preço do gás natural no Brasil custa o triplo do praticado em outros países, por causa do monopólio da Petrobras. “Isso prejudica o crescimento das nossas empresas, a geração de empregos e renda”, diz, em vídeo de propaganda sobre a nova lei.

A CNI afirma que os preços da conta de energia elétrica e gás de cozinha podem diminuir, além de outros benefícios que a entidade promete com a proposta.

Segundo Paulo Guedes, a aprovação da Lei do Gás no Congresso permitirá o destravamento imediato de 43 bilhões de reais em investimentos. A expectativa é atrair 630 bilhões de reais em investimentos privados para o setor ao longo de dez anos.

O que dizem os críticos à Nova Lei do Gás

Para a FUP, a nova legislação escanteia a centralidade da Petrobras no setor para dar andamento à sua privatização. Desde 2019, quando a Comissão de Minas e Energia debatia o tema na Câmara, a federação já rechaçava os argumentos de defesa do texto.

“O argumento que orienta tal política é, uma vez mais, a quebra do monopólio da Petrobras e a crença cega na concorrência como premissa para um setor que é internacionalmente oligopolizado”, dizia nota daquele ano. “No entanto, a petrolífera brasileira, como empresa pública e integrada, foi a grande responsável pelos investimentos nos ativos que criaram as oportunidades que hoje estão sendo disputadas pelos players privados e internacionais do setor.”

Diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep), o mestre em Desenvolvimento Econômico William Nozaki diz que não crê nas expectativas do governo federal.

Primeiro, ele acredita que o governo “joga com a confusão” e não esclarece o real objetivo da lei. Segundo o pesquisador, a Lei do Gás incide sobre o mercado de gás natural que abastece indústrias e termelétricas, diferente do gás de botijão de cozinha. “O governo trata o assunto como se alterar a lei do gás natural fosse impactar diretamente no consumidor final do botijão de gás. Mas o consumidor do gás natural é a indústria, e não as famílias e domicílios”, destaca.

A influência mais direta, para ele, pode ocorrer em relação ao preço dos combustíveis. No entanto, é preciso considerar todo o contexto para assegurar que esses preços, de fato, vão ser reduzidos.

O professor explica que o processo de exploração do gás natural que está no mar demanda uma série de fases. Por isso, as indústrias de gás em outros países atuam em rede, ou seja, na exploração, produção, logística, transporte e distribuição, para viabilizar uma redução de custos.

Por outro lado, quando você fatia esse processo e entrega os pedaços a diversas empresas privadas, isso significa que, em cada etapa, será incluído um novo ator econômico que vai impor sua margem de lucro sobre o processo, de modo que o preço final pode sofrer elevação e ficar mais caro.

“O governo diz que a concorrência é capaz de fazer face a essa elevação, que vai ocorrer em função do aumento da margem de lucro com a existência de múltiplos operadores. Mas as experiências internacionais mostram que não tem sido assim”, afirma.

O professor cita o exemplo da Rússia, em que as atividades do setor são centradas em empresas estatais, em todos os elos dessa cadeia produtiva. No caso dos Estados Unidos, Nozaki afirma que há um arcabouço legislativo que permite maior controle estatal. Ele sustenta que nenhuma experiência de países que são grandes exploradores e produtores se abriu ao mercado sem tomar atenção cuidadosa com o marco regulatório.

“Na Rússia, você tem empresas estatais verticalizadas, e nos EUA, você tem um marco regulatório bastante sofisticado. No Brasil, nem uma coisa, nem outra. A Lei do Gás entra num cenário de desmonte da Petrobras, então não temos uma estatal verticalizada para lidar com o novo cenário. E não ficou claro qual será o novo papel da ANP para lidar com essa complexidade”, disse.

O professor questiona ainda a real capacidade de atrair investimentos privados para ampliar a malha de gasodutos.

Pela trajetória do setor de gás no Brasil, diz Nozaki, a Petrobras alavancou esses investimentos. Para ele, esforços públicos atuam como “indutores” dos investimentos privados, o que tornaria improvável a tese de que haverá crescimento de investimentos privados de forma autônoma, sem os estímulos da Petrobras.

Além disso, um segundo problema é que o financiamento de longo prazo para grandes projetos de infraestrutura no Brasil, via de regra, depende do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). E a carteira do BNDES não dá sinais de que fará esses investimentos para alavancar os investimentos privados.

Um terceiro caminho seria a aprovação do Brasduto, que criaria um fundo específico para o financiamento de obras no setor de gás. Apesar de ter sido votado no Congresso, o governo federal já sinalizou que vai vetar a medida.

Sem Petrobras, BNDES ou um fundo específico, Nozaki afirma ser muito difícil visualizar como as empresas privadas vão assumir esse pacote de investimentos sozinhas.

Portanto, na prática, a Lei do Gás permitiria às empresas privadas controlarem gasodutos que já existem, sem que isso signifique real expansão da estrutura.

“O interesse das empresas privadas é utilizar o gás que a Petrobras descobriu no pré-sal e que está sendo vendido, e utilizar a malha de dutos que a Petrobras construiu e está sendo vendida”,diz o professor. “Mas não há sinais de que ela vá construir novas malhas. Há sinais é de que vai se intensificar a exploração do que já existe, mas sem indicativos concretos de que os investimentos vão ser ampliados, como Guedes anuncia”.

(Fonte: CartaCapital)