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Por Rodrigo Caetano para a Exame.

Quebra do monopólio da Petrobras e mudanças regulatórias abrem caminho para investimentos privados no mercado de gás. Setor pode deslanchar no Brasil

 

Há uma sensação de mudança no ar. Provocada por um raro alinhamento de interesses públicos e privados, está em curso um processo sem precedentes de abertura do setor de gás no Brasil, controlado por um monopólio da Petrobras que se arrasta desde os anos 50.

A consequência esperada é um intenso crescimento no uso dessa fonte energética e a atração de investimentos da ordem de 50 bilhões de reais ao país até 2030. Se bem-sucedida, a abertura promete reduzir os custos de energia e gerar milhares de empregos, beneficiando toda a economia.

A confiança atingiu seu ápice na tarde do dia 8 de julho. Em uma cerimônia realizada em Brasília, o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e o presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Barreto, assinaram um Termo de Compromisso e Cessação (TCC), documento que praticamente põe um ponto final ao controle da estatal no mercado de gás natural. “Estamos convictos de que o novo mercado de gás, aliado à atual conjuntura nacional, nos afiança um tempo de modernidade, inovação, sustentabilidade e prosperidade”, disse o ministro Bento Albuquerque, de Minas e Energia, durante o evento.

Pelo acordo, a Petrobras compromete-se a fazer um desinvestimento no setor, com a venda de uma série de ativos, entre eles a TBG, última grande transportadora sob controle da estatal, dona do gasoduto Brasil-Bolívia. O cronograma imposto pelo termo assinado prevê a conclusão do negócio até 2021.

A Petrobras também terá de vender o restante de sua participação na transportadora Tag, que teve 90% das ações compradas recentemente por um consórcio formado pela franco-belga Engie e pelo fundo canadense CDPQ, por 8,6 bilhões de dólares. Além disso, será preciso se desfazer dos 10% que ainda detém na NTS, transportadora vendida em 2017 a um consórcio liderado pela gestora canadense Brookfield, por 5  bilhões de dólares. Entra no bolo do desinvestimento, ainda, a Gaspetro, subsidiária da Petrobras que tem participação societária em 18 distribuidoras.

O acordo entre Cade e Petrobras é considerado um marco no setor. A estrutura do mercado de gás se assemelha à do setor de energia elétrica. Ele é dividido em três segmentos: produção, transporte e distribuição. Os dois últimos são considerados monopólios naturais, ou seja, funcionam no modelo de concessão em áreas delimitadas, da mesma forma que as companhias de eletricidade.

Na produção, no entanto, é possível ter concorrência, contribuindo para baixar o preço do gás. As estruturas de transporte e distribuição, por sua vez, podem ser compartilhadas, a exemplo das torres de transmissão e das redes das concessionárias de energia. Como o controle de todo o setor estava nas mãos da Petrobras, nada disso acontecia, e o preço do gás na ponta chegava a 12 dólares por unidade, cerca de quatro vezes o preço nos Estados Unidos. “Estamos promovendo uma transformação estrutural na economia. Em um período de 27 dias, foram tomadas medidas efetivas para a abertura de dois mercados, o de refino e o de gás”, disse Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, em entrevista a EXAME (leia abaixo).

Agora, o governo e a iniciativa privada esperam que o gás natural aumente sua participação na matriz energética brasileira. No ano passado, essa fonte não renovável representou 8,6% do total consumido, uma queda em relação a 2017, quando o gás representava 10,5%. No início de julho, durante um evento voltado para profissionais do mercado financeiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, apontou a estratégia do governo para promover o que ele classificou de “choque de energia barata”.

“A Petrobras já se convenceu de que não tem de ficar vendendo gasolina, tem de se concentrar no pré-sal”, afirmou Guedes. “Quebramos o monopólio. A partir daí, entes privados, como a Vale, se comprometem a comprar de 20 a 30 anos de energia. Quando se tem essa demanda, aparecem os interessados em construir os dutos.” Pelas contas do ministro, o preço do gás ao consumidor, com o novo modelo de mercado aberto, pode cair até 40%. Caso isso ocorra, Guedes prevê um crescimento de 8,5% do PIB industrial em dois anos.

A quebra do monopólio não é a única ação do governo no setor. Duas semanas antes da assinatura do acordo no Cade, o Conselho Nacional de Política Energética publicou uma resolução que fixa diretrizes e aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas para a promoção da livre concorrência no mercado de gás natural.

“Com essa resolução, pela primeira vez temos uma proposta de política pública para o setor”, afirma José Cesário Cecchi, diretor da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Apesar de não ter o peso de uma legislação, segundo Cecchi, a resolução “prepara o terreno” para a criação de um mercado concorrencial. “Antes de erguer uma casa, constrói-se o alicerce. O conselho determinou as regras, agora precisamos dos instrumentos para implementá-las”, diz ele.

O Termo de Compromisso e Cessação  é um desses instrumentos. “O acordo dá acesso à infraestrutura do gás a outros ofertantes que atuam no pré-sal. A petroleira Shell vai poder utilizar os gasodutos que antes eram exclusivos da Petrobras”, diz Adriano Pires, sócio da consultoria Centro Brasileiro de Infraestrutura.

Esses gasodutos conectam as plataformas de exploração em alto-mar aos chamados citigates, que funcionam como centros de distribuição para levar o combustível até as distribuidoras e, de lá, aos clientes. Para isso acontecer, é necessário determinar, entre outras coisas, as tarifas de utilização das estruturas, uma das questões tratadas pela resolução do Conselho Nacional de Política Energética.

Posto de combustível: a expansão dos carros movidos a gás tende a baratear o consumo (Foto: Ana Macedo/Futura Press)

O movimento de abertura do mercado brasileiro ocorre num momento de grande oferta de gás no mundo. Graças ao aumento da produção do gás de xisto nos Estados Unidos e ao processo de liquefação do combustível, que permite seu transporte por navios, a oferta do produto, atualmente, é enorme. Soma-se a isso a retomada das atividades no pré-sal brasileiro, o que deve gerar ainda mais abundância de gás. “Não faz sentido pagarmos um valor tão alto no Brasil quando se tem esse nível de oferta mundial”, afirma Pires. “Precisamos criar a infraestrutura para utilizar esse nosso potencial.”

A construção dessa infraestrutura, de acordo com estimativas do Ministério de Minas e Energia, deve atrair para o país investimentos da ordem de 50 bilhões de reais até 2030. A Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan) é ainda mais otimista. A entidade mapeou um total de 140 bilhões de reais em projetos ligados à cadeia do gás para ser efetivados até 2023.

Esse montante inclui investimentos diretos, das empresas participantes da cadeia de produção e distribuição, e indiretos, realizados por grandes consumidores. “O gás é um indutor de crescimento econômico. Esperamos atrair para o Rio de Janeiro diversas indústrias que consomem o combustível”, diz Thiago Rodrigues, coordenador da gerência de petróleo, gás e naval da Firjan. “Nosso estado também tem a maior frota de carros movidos a gás do Brasil. Ampliar a oferta do gás terá um efeito positivo no transporte.”

Na visão da Engie, que, recentemente, adquiriu a transportadora Tag da Petrobras, o mercado se encontra em um nível de desenvolvimento que justifica a maior participação da iniciativa privada e o fim do controle estatal. “O governo não tem a vocação de ser empreendedor”, afirma Maurício Bähr, presidente da companhia no Brasil. “É natural que o Estado tome decisões iniciais em relação a grandes obras de infraestrutura e, quando o mercado amadurece, deixe espaço para o setor privado operar.” Há, no entanto, condições para que o investimento ocorra, de acordo com Bähr: segurança jurídica e manutenção das regras do jogo.

É nesse ponto que está o calcanhar de aquiles dos planos do governo. Para justificar investimentos privados na infraestrutura de transporte do gás, é preciso criar demanda. Por causa disso, o Ministério da Economia busca incentivar os estados a criar as próprias regulamentações para o segmento de distribuição, algo previsto na Constituição.

O Rio de Janeiro, do governador Wilson Witzel, foi o primeiro a aderir ao movimento. O Rio aprovou, em junho, uma série de medidas que, na prática, criam a figura do consumidor livre de gás. A exemplo do que ocorre no setor de energia elétrica, essa classificação visa permitir que consumidores de altos volumes possam comprar diretamente do produtor, sem passar pela distribuidora.

A medida é polêmica, pois, tecnicamente, configura uma quebra do contrato de concessão existente. “Não se pode simplesmente baixar o custo do gás com uma canetada”, afirma Augusto Salomon, presidente executivo da Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado. Os atritos entre a espanhola Naturgy, concessionária de gás fluminense, e o governo já começaram.

Questionado sobre a possibilidade de judicialização da questão, na ocasião do anúncio das medidas de abertura do mercado, Witzel afirmou: “Eu sou bom de briga no tribunal”. Para o secretário de Desenvolvimento Econômico do Rio de Janeiro, Lucas Tristão, as medidas tomadas pelo governo foram baseadas em estudos técnicos e, por isso, ele crê ser improvável a judicialização. “Não há quebra de contrato”, diz Tristão.

Em nota enviada a EXAME, a Naturgy afirmou que “apoia a liberalização do mercado de distribuição de gás natural no Rio de Janeiro. E reforça a importância de que todas as mudanças sejam feitas com análise crítica a fim de que os objetivos possam ser alcançados para todo o mercado, evitando prejuízos difíceis de ser revertidos”. No dia 15 de junho, a Naturgy entrou com embargos à reforma do setor de gás na agência reguladora de energia e saneamento do Rio.

Uma saída para o imbróglio seria estender o prazo de concessão — a Naturgy tem mais oito anos de contrato — para compensar as perdas decorrentes da abertura. Também é possível estabelecer uma tarifa compensatória para a distribuidora, que seria paga pelos consumidores livres, mesmo que não utilizem a infraestrutura.

“O que estamos vendo no mercado de gás é o mesmo cenário que tínhamos no setor elétrico há duas décadas. Medidas intempestivas e sem planejamento não funcionam”, diz o consultor Pires. O gás é uma fonte de energia barata e, apesar de não renovável, emite menos carbono do que outras fontes térmicas, como carvão e diesel. No mundo inteiro, é considerada uma fonte de transição dos combustíveis fósseis para as fontes renováveis. Com a abertura, o Brasil está prestes a finalmente aproveitar tudo o que o gás pode gerar. 


FOCO NA PRODUÇÃO

Para o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, a estatal deve se concentrar na exploração de petróleo e gás e abrir espaço para a iniciativa privada em vários setores | Rodrigo Caetano

Castello Branco, da Petrobras: “A empresa em 2022 terá menos dívida e mais lucratividade”. (Foto: Sergio Moraes/Reuters)

Uma empresa marítima, especializada na exploração de águas profundas, menos endividada e mais lucrativa. Essa é a fotografia que o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, espera tirar da estatal em 2022. Ex-conselheiro da própria Petrobras e amigo pessoal do ministro da Economia, Paulo Guedes, o responsável por sua indicação para a presidência da estatal, Castello Branco ressalta que, num período de 27 dias, foram tomadas medidas efetivas para quebrar os monopólios da petroleira em dois mercados, o de refino e o de gás, que, por sinal, são ilegais há mais de 20 anos.

Daqui para a frente, os esforços da empresa estarão concentrados na produção de petróleo e de gás e no incentivo à construção de uma indústria de petróleo de grande porte e diversificada no Brasil. Leia, a seguir, trechos da entrevista que Castello Branco concedeu a EXAME.

Qual será o papel da Petrobras no mercado de gás?

Em primeiro lugar, é importante salientar que, em 27 dias, a contar de 11 de junho até 8 de julho, foram tomadas medidas efetivas para a abertura de dois mercados, o de refino e o de gás. A Petrobras possuía monopólios nesses dois setores sem amparo da lei. Durante 22 anos, desde a promulgação da Lei do Petróleo, em 1997, ela atuou como ator dominante de maneira ilegal. Estamos promovendo uma transformação estrutural na economia. Nesse sentido, o papel que caberá à Petrobras no mercado de gás será o de produtora. Estamos adotando uma postura proativa. Fomos nós que procuramos o Cade para realizar esse acordo.

Já existe um cronograma de desinvestimento no setor de gás, conforme acordado com o Conselho Administrativo de Defesa Econômica? Quanto essas negociações devem render para a Petrobras?

Não temos um cronograma detalhado, ainda estamos estruturando. Pelo acordo, venderemos integralmente a TBG [dona do gasoduto Brasil-Bolívia], os 10% de participação que ainda temos nas transportadoras NTS e Tag e nossa participação na Gaspetro, que deve ser vendida em partes. Afinal, não faz sentido trocar um monopólio por outro. Além disso, já estamos executando a venda da distribuidora Liquigás, que deverá ser concluída em agosto. Sobre valores, prefiro não fazer previsões. Quem vai determinar o preço é o mercado. Nossa prioridade é melhorar a alocação de capital, saindo de setores que não são nossos negócios principais.

Como se dará a compensação financeira pelos investimentos realizados pela Petrobras?

A venda desses ativos já compensa os investimentos realizados. A tarifa quem vai cobrar é o novo dono de cada ativo.

O programa de desinvestimento da Petrobras vai além do mercado de gás. Quanto se espera movimentar no processo?

Vamos vender oito refinarias, nossos campos de petróleo maduros em terra e águas rasas, 15 usinas térmicas, as redes de postos de gasolina na Colômbia e no Uruguai e estamos no processo de venda de participação na BR Distribuidora, sobre o qual não posso falar. Não temos um valor esperado. Isso depende do mercado. A meta é ter retorno sobre o capital investido.

Qual é sua visão para a Petrobras daqui a cinco anos?

Ela será diferente, com as operações concentradas no Espírito Santo, em São Paulo e no Rio. Será uma empresa marítima, especializada na exploração em águas profundas, com um grupo pequeno de refinarias e produzindo mais petróleo e mais gás. Em 2022, a fotografia da empresa já será essa, com menos dívida e muito mais lucratividade.

Em relação à retomada dos investimentos na camada do pré-sal, o ministro Paulo Guedes, da Economia, falou em valores entre 500 bilhões e 1  trilhão de dólares. A estimativa é realista?

Esses números não são nossos, são dos outros. Agora, a manutenção de um calendário de leilões vai resultar em grandes investimentos, no crescimento da produção brasileira e num crescimento muito forte da arrecadação. Estamos entrando em um jogo muito interessante de ganho para a Petrobras e para o Brasil. Teremos uma indústria de petróleo de fato, com grandes players internacionais. Já atraímos a Petronas, da Malásia, que nunca havia investido e pagou 1,1 bilhão de dólares para adquirir um campo. Com a venda dos campos maduros em terra e águas rasas, teremos médios e pequenos produtores atuando. Enfim, será uma indústria de grande porte e diversificada.

Novas tecnologias, como o carro elétrico, podem tornar o petróleo obsoleto. Como a Petrobras entende essa questão da transição das fontes de energia?

Um dos defeitos que eu tenho é ser consistente. Em meu discurso de posse, falei da necessidade de eliminar monopólios e de se concentrar na exploração porque é a oportunidade que nós temos. O petróleo, no futuro, terá menos valor por causa das inovações que estão chegando. A demanda por essa commodity vai desacelerar e poderá até ficar estagnada.

A exemplo do mercado de gás, no setor de refino, a Petrobras assinou um acordo com o Cade pelo qual se compromete a vender oito de 13 refinarias. Qual será o efeito do acordo no preço do combustível?

Não creio que haja grande efeito. Os combustíveis são uma commodity global, pelo menos no mundo civilizado. Procuramos diversificar os combustíveis que vendemos seguindo o preço internacional do produto, internalizado para o Brasil e convertido em reais. O que vai mudar é que cada empresa terá sua forma de precificar e seu tempo de atualização. Vamos ter produtos diferentes e mais investimentos, tanto em refinarias quanto em logística. Ter um refinador só, como é hoje, é uma anomalia. Na China, vendemos para 37 refinarias privadas. Isso é bom para a economia.

Como vai ficar a política de preços para o diesel?

Continua a mesma. Ajustamos o preço conforme a cotação internacional e pensando em nossos clientes. Nem nos Estados Unidos, a economia mais livre do mundo, o preço é ajustado diariamente.

Analistas afirmam que há uma mudança geopolítica no mercado de petróleo, em que ter reservas é menos importante do que acesso a mercados. O que a Petrobras está fazendo para abrir novos mercados?

Quem tem essa opinião não está bem informado. Em commodities não existe isso. Não estou sentindo dificuldade em nenhum mercado. Se fabricássemos automóveis, aí, sim, teríamos de negociar. Nosso problema é produzir mais. A produção está estagnada há dez anos. É uma questão de preços, não de negociações.

(Fonte: Exame)