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Defende ações de suporte ao setor
Sem isso, cadeia pode ser afetada
E passar por uma desorganização

Por Adriano Pires para o Poder360.

Neste artigo vamos apresentar uma proposta que preserve a liquidez do setor de distribuição de gás natural canalizado diante dos efeitos negativos originados pela pandemia de Covid-19. Os dois principais efeitos que precisam ser enfrentados para que esse setor faça a travessia da crise e não seja desestruturada a cadeia de gás natural são o volume contratado (sobre contratação) e o nível de inadimplência das concessionárias.

Análogo ao processo de diálogo entre todos os stakeholders do setor elétrico que culminou com a promulgação da Medida Provisória #950, bem como Decreto #10.350 com medidas emergenciais para salvaguardar a liquidez / solvência do setor de distribuição de energia elétrica, busca-se sensibilizar os stakeholders do setor do gás natural para solução semelhante. É bom lembrar, que tanto a distribuição de energia como a de gás natural representam o elo da cadeia que lida com o consumidor final e são responsáveis pela totalidade do esforço arrecadatório. No total da arrecadação na cadeia, as distribuidoras de gás ficam com 17% e as elétricas 19%.

No contexto da tão almejada abertura do mercado de gás, por intermédio do Novo Mercado de Gás (NMG), é importante assegurar aos investidores atuais e futuros, o respeito aos contratos de concessão e ao equilíbrio econômico-financeiro da atividade. Assim como no caso do setor elétrico, reforçando-se a isonomia e trazendo segurança jurídica e regulatória – pilares da atração de capital para as privatizações e os novos investimentos.

O mercado de distribuição de gás natural alcançou um consumo de 64,6 milhões de metros cúbicos dia em 2019, mantendo-se relativamente estável (+0,9%) em relação a 2018, com número de consumidores alcançando a cifra de 3,67 milhões do universo de 27 distribuidoras em 24 estados da federação. Nos últimos 3 anos o volume de gás cresceu em média 1,5% a.a. vs. 1,4% no setor de distribuição de energia elétrica.

As medidas de isolamento adotadas ao longo do mês de março em função da pandemia de Covid-19 levaram a efeitos negativos nos dados de volume e inadimplência do setor, movimento mais exacerbado do que o verificado no setor de distribuição de energia elétrica.

O volume de gás natural no mês de março recuou 14,3% em relação ao mesmo mês de 2019 e 20,7% na comparação com fevereiro de 2020.

A análise dos dados de abril e maio até o presente mostra reduções preliminares de volume de até 35-40% na classe industrial, 40% no GNV (Gás Natural Veicular) e até 60% no setor comercial.

Com relação ao volume de inadimplência, o setor que historicamente opera com percentuais de 2% a 4% em média apresentou nos meses de abril e maio aceleração alcançando níveis de 15 a 20% e aumento no número de clientes inadimplentes de 40 a 60% nos diferentes Estados. Existe uma expectativa que esses números possam piorar a partir de junho, na medida, em que vai ocorrer uma depuração no mercado. Essa depuração vai mostrar quem vai sobreviver e como será a reação à reabertura econômica e seus efeitos para os consumidores. Lamentavelmente, as expectativas não são das melhoras e o que se imagina é muita dificuldade daqui a dezembro ou mesmo janeiro de 2021.

A ausência de medidas de suporte para balancear o capital de giro das empresas poderá levar à interrupção do pagamento dos outros elos da cadeia (produção e transporte) a partir de junho. Levando a uma desorganização total da cadeia de gás natural no Brasil.

A Conta-Covid: as experiências do setor elétrico (2014 e 2020) e subvenção do óleo diesel (2018)

Do ponto de vista legal, em que se pese a diferença de titularidade do ente federativo no campo regulatório (federal para o setor elétrico e estadual no caso da distribuição de gás natural), os contratos de concessão, a natureza de pass-through dos custos de compra de gás, a constituição de ativos regulatórios e previsão de reajustes tarifários anuais e/ou revisões tarifárias periódicas asseguram um ambiente regulatório que traz o mesmo conforto aos bancos privados ou a uma linha de crédito do BNDES para a criação da Conta-Covid para o gás natural.

Os contratos de concessão das distribuidoras de gás também preveem cláusulas de reequilíbrio econômico-financeiro. Portanto, os elementos de garantia em ativos regulatórios para a obtenção dos empréstimos de natureza setorial estão presentes de maneira inequívoca.

Adicionalmente, os preços de gás natural possuem cláusulas de reajuste com tempestividade inferior a 12 meses, com repasse de desvalorização cambial e mudança nos preços da molécula com periodicidade até trimestral, corroborando com o quadro de segurança para bancos na consideração de ativos regulatórios como garantia de empréstimos setoriais.

No caso do setor elétrico houve duas situações de publicação de decretos para viabilizar empréstimos setoriais para preservar o capital de giro das concessionárias devido a desequilíbrios temporários: 2014 e agora 2020.

2014: Decreto #8.221 de 21 de Abril de 2014

Na ocasião, o decreto criou a Conta-ACR com gestão (liquidação e custódia) atribuída à Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), entidade sem fins lucrativos criada pela Lei 10.848 de 15 de março de 2004 (regulamentada pelo Decreto #5.177/04). A Conta ACR foi criada com o intuito de cobrir, total ou parcialmente, no período de fevereiro até dezembro de 2014, as despesas incorridas pelas distribuidoras de energia elétrica em decorrência da exposição involuntária no mercado de curto prazo e despacho de usinas termelétricas vinculadas a CCEARs na modalidade disponibilidade. A cobertura foi feita por intermédio de empréstimo de sindicato de bancos lastreados em ativos regulatórios e que foram posteriormente amortizados via repasse de principal e juros para tarifas.

2020: Decreto #10.350 de 18 de Maio de 2020

Agora foi criada a Conta-Covid a ser gerida novamente pela CCEE com o objetivo de receber recursos para cobrir déficits ou antecipar receitas, total ou parcialmente, das distribuidoras de energia elétrica no período de abril a dezembro de 2020. Compõe a conta:

efeitos financeiros de sobrecontratação;
saldo em constituição da Conta de Compensação de Variação de Valores de Parcela A – CVA (custos não gerenciáveis, com natureza de pass-through integral a tarifas);
neutralidade de encargos setoriais;
postergação até 30 de junho de 2020 de processos tarifários;
saldos não reconhecidos ou diferidos de CVA do último processo tarifário;
antecipação do ativo regulatório relativo a “Parcela B” conforme regulação da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).

Os montantes a serem contratados novamente junto aos bancos comerciais para preservar o capital de giro das distribuidoras signatárias do acordo com os critérios estabelecidos serão amortizados parcialmente via tarifas a partir dos reajustes de 2021 pelo prazo de 60 meses.

Diferentemente da situação de 2014, os reajustes tarifários posteriores serão suavizados por medidas regulatórias e possivelmente do Tesouro Nacional para não onerar excessivamente os consumidores finais, em momento de recuperação de renda e de emprego pós pandemia de covid-19. Esse assunto ainda está em discussão.

2018: Decreto #9.454 de 1 de Agosto de 2018

A greve de caminhoneiros de 11 dias iniciada em 21 de maio de 2018 devido aos reajustes de preços do diesel que alcançaram 56% em 11 meses em um cenário restritivo de volume de carga levou a medidas conciliatórias. A principal foi a criação da subvenção ao diesel (congelamento temporário de preços) com recursos do Tesouro Nacional de até R$ 9,5 bilhões. A subvenção foi criada por intermédio da Medida Provisória 838 de 30 de maio de 2018, posteriormente convertida na Lei 13.723 de 4 de outubro de 2018.

O decreto #9.454/18 regulamentou a medida e atribui a ANP – uma autarquia federal vinculada ao Ministério de Minas e Energia (MME) – a responsabilidade pela gestão (liquidação e custódia) da conta gráfica referentes a preços do diesel praticados vs. preços de referência, com base na subvenção de:

R$0,07 por litro até 7 de junho de 2018; e
Até R$0,30 por litro a partir de 8 de junho de 2018 e limitado a 31 de Dezembro de 2018 ou o esgotamento dos R$9,5bn de crédito da União, o que ocorrer primeiro

Outra possibilidade para ajudar na travessia das distribuidoras está no papel da Petrobras como praticamente supridora universal do gás natural para o setor. Essa é uma vantagem de articulação do setor de distribuição de gás natural em relação ao setor elétrico que compensa, mesmo que parcialmente, a desvantagem da descentralização da atividade regulatórias pelos estados.

Dessa forma, como a compra de gás responde por 46% da tarifa final, tratativas de parcelamento da compra e das penalidades – como a oferecida voluntariamente pela Petrobras a partir de março – em intervalos maiores de tempo, por exemplo ate dezembro de 2020, com as devidas compensações monetárias são bem-vindas nesses tempos de pandemia.

Os exemplos das soluções encontradas para o setor elétrico em 2014 e agora em 2020 e para o óleo diesel em 2018 mostram de maneira inequívoca espaço para a elaboração de medidas de preservação da liquidez em caráter emergencial para socorrer o setor de distribuição de gás canalizado na travessia da crise. A elaboração e a execução dessas medidas, configura-se como essencial e fundamental para preservar a cadeia do gás natural e para atingir os objetivos estabelecidos pelo Novo Mercado de Gás (NMG) e pela Lei do Gás que está tramitando no Congresso Nacional.

(Fonte: Poder360)

Adriano Pires é sócio fundador e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE).