Post

Nova mistura de biocombustíveis é passo estratégico na transição energética ao alinhar segurança ambiental, autonomia econômica e previsibilidade

CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) aprovou, no fim de junho, um novo aumento na mistura obrigatória de biocombustíveis aos combustíveis fósseis. A gasolina passará a ter 30% de etanol anidro em sua composição (E30) e o diesel vendido nos postos terá teor de 15% de biodiesel (B15). 

As novas proporções entram em vigor em 1º de agosto e fazem parte de uma política mais ampla para reduzir a pegada de carbono da matriz de transportes, atrair investimentos e conter a dependência externa por derivados. A medida também responde a pressões por mais previsibilidade na transição energética brasileira, alinhando metas ambientais a estímulos econômicos de curto e médio prazo.

Segundo estimativas do MME (Ministério de Minas e Energia), a nova mistura de etanol pode atrair cerca de R$ 10 bilhões em investimentos e criar até 50.000 empregos. O governo determina ainda um excedente exportável de 700 milhões de litros de gasolina por ano, ao mesmo tempo em que reduz a necessidade de importações.

No caso do biodiesel, o avanço para o B15 também deve movimentar o segmento. A estimativa oficial é de que a nova mistura traga R$ 5,2 bilhões em investimentos e contribua com a redução de cerca de 4,2 milhões de toneladas de CO₂ equivalente por ano. É o tipo de medida que aciona vários mecanismos ao mesmo tempo: além do benefício ambiental, há impulso econômico e alívio sobre a balança comercial.

Apesar dos ganhos potenciais, o avanço das misturas ainda leva ao ressurgimento de alguns mitos que há anos rondam o debate público sobre biocombustíveis. O mais recorrente é a suposta competição entre a produção de alimentos e a de energia. No caso brasileiro, essa visão ignora que a expansão da produção de biocombustíveis ocorreu majoritariamente em áreas já consolidadas, e que o setor agrícola tem capacidade de atender simultaneamente as demandas por grãos, energia e proteína animal. 

Um estudo da FGV (Fundação Getulio Vargas), publicado pelo projeto “Geopolítica da Energia” em parceria com o Cindes (Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento), mostra que a política brasileira de etanol tem impacto neutro sobre os preços de alimentos, por causa da elevada produtividade agrícola e da ausência de deslocamento de culturas alimentares em larga escala. Além disso, um relatório (PDF – 4 MB) conjunto do Banco Mundial e da OCDE, intitulado Agricultural Outlook 2023–2032”, reforça que o Brasil é um dos poucos países capazes de expandir sua produção de biocombustíveis sem comprometer a segurança alimentar ou provocar inflação de preços globais de grãos.

Outro argumento comum diz respeito a possíveis danos a motores por conta das altas concentrações de biocombustíveis. Embora esse receio tenha sido razoável no início dos programas, o atual estágio tecnológico já superou esse obstáculo. Diversos testes vêm sendo conduzidos há anos com o E30 e até com teores superiores, como no caso da Índia, e os resultados mostram que veículos leves mantêm desempenho, consumo e integridade dos componentes. 

No Brasil, um dos estudos mais relevantes foi conduzido pela Unem (União Nacional do Etanol de Milho), que avaliou por 14 meses uma frota de veículos flex abastecida com E30 em ambientes urbanos. Os resultados, divulgados em 2023, mostraram zero incidência de falhas mecânicas ou de desempenho, além de emissões reduzidas de CO₂ por km rodado.

Além disso, o Instituto Mauá de Tecnologia realizou, em parceria com a Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar), um programa de ensaios técnicos (PDF – 17 MB) com diferentes teores de etanol, incluindo o E30. Os testes, concluídos em 2022, indicaram que o uso do E30 é plenamente viável em motores flex fabricados no Brasil, sem necessidade de ajustes técnicos ou aumento no consumo de combustível. 

No caso do biodiesel, o Brasil já testou com sucesso misturas superiores ao B15, especialmente em frotas cativas de transporte público. O projeto Diesel B20 Metropolitano (PDF – 3 MB), por exemplo, implementado em Curitiba de 2021 a 2022, demonstrou redução de emissões e estabilidade nos motores utilizados.

O que ainda falta resolver é a previsibilidade regulatória. Historicamente, o setor de biocombustíveis no Brasil sofreu com mudanças abruptas de política e insegurança jurídica. Embora leis como a do Combustível do Futuro e o Paten (Programa de Aceleração da Transição Energética) tenham estabelecido diretrizes mais claras, ainda há espaço para aperfeiçoamento. Investidores precisam de horizonte e de segurança para financiar novos projetos, especialmente em áreas como armazenamento, distribuição e modernização da frota. O Brasil tem todas as condições para liderar a transição energética nos transportes com base em soluções próprias. 

Se o plano for executado como projetado, o país pode transformar sua matriz de combustíveis em um modelo de eficiência, competitividade e sustentabilidade. A adoção do E30 e do B15 é mais do que um ajuste técnico: é uma decisão estratégica com efeitos de longo prazo para a economia, o meio ambiente e a segurança energética. Com planejamento, base técnica robusta e articulação institucional, o Brasil pode consolidar os biocombustíveis como um ativo estrutural de sua transição energética, com menos ruído, mais estabilidade e ganhos para todos os setores envolvidos.

Publicado originalmente pelo Poder360.