O mercado cinzento de combustíveis no Brasil

Sistema de alta tributação, fragmentado e opaco mina a credibilidade do mercado e incentiva operação de empresas criminosas
O setor de combustíveis no Brasil carrega, há anos, uma vulnerabilidade crítica: um sistema tributário e regulatório fragmentado e permeado por exceções. A complexidade do arcabouço fiscal não só dificulta a previsibilidade de custos e margens, mas também cria um terreno fértil para comportamentos oportunistas.
Em um ambiente onde cadeias de valor são longas, integrando refinarias, distribuidoras, importadoras, postos revendedores e uma malha de logística intensiva, a variedade de tributos e a falta de harmonização entre esferas federais e estaduais constituem falhas de mercado notáveis.
A tributação de combustíveis é um mosaico difícil de decifrar, mesmo para agentes mais experientes do mercado. Sobre a gasolina, por exemplo, incidem impostos federais como Cide, PIS/Pasep e Cofins, além do ICMS estadual –que recentemente ganhou contornos mais simples com a aplicação da cobrança monofásica ad-rem.
O etanol, apesar de ter apelo ambiental, não escapa da confusão: além da cobrança diferenciada do ICMS, sua tributação sofre impactos da política de incentivos que altera o equilíbrio competitivo. Para o diesel, as constantes mudanças em alíquotas e isenções refletem a sensibilidade política do produto, utilizado como insumo em transporte de carga e de passageiros e no agronegócio.
Um bom exemplo recente da volatilidade e da complexidade dos tributos sobre o segmento foi o debate durante a discussão da reforma tributária, no final de 2023. No texto original da proposta, havia uma medida que isentava o Imposto de Importação e o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para o setor de petróleo na ZFM (Zona Franca de Manaus). Essa mudança permitiria que importadores desses produtos fossem trazidos para a região a valores menores do que em outras partes do país, resultando em assimetrias claras de mercado.
A alta carga tributária, e em constante mudança, tem consequências para a formação de preços e a avaliação de políticas públicas. No caso do ICMS, por exemplo, a cobrança, baseada em uma pauta fiscal ou no PMPF (Preço Médio Ponderado ao Consumidor Final), é fonte recorrente de judicialização e incerteza. Historicamente, a dinâmica sensível entre os preços de refinarias, importadores, adição de biocombustíveis, margem de distribuição e revenda e a carga tributária torna qualquer tentativa de estabilização artificial uma tarefa onerosa e sujeita a críticas de todos os lados.
A propensão desse ambiente à proliferação de esquemas ilícitos é um fato conhecido, como demonstrou a recente operação Carbono Oculto, deflagrada pela PF (Polícia Federal) em 28 de agosto. A investigação, considerada a maior já realizada contra o crime organizado no Brasil, mirou um esquema bilionário de sonegação, lavagem de dinheiro e adulteração de combustíveis, revelando a infiltração do crime organizado em praticamente toda a cadeia do setor.
As apurações mostram uma rede altamente sofisticada, que controlava da importação e produção até a distribuição e revenda ao consumidor final. Além disso, o grupo utilizava fintechs, fundos de investimento e empresas de fachada para ocultar patrimônio e legitimar recursos ilícitos.
De 2020 a 2024, foram importados mais de R$ 10 bilhões em combustíveis por empresas ligadas ao esquema. As operações envolviam o uso de importadoras como “laranjas” para adquirir nafta, hidrocarbonetos e diesel, repassados a formuladoras e distribuidoras associadas ao grupo. Essas companhias não só sonegavam tributos de forma sistemática, como adulteravam combustíveis para ampliar margens de lucro. Em só 4 anos, R$ 52 bilhões circularam por postos fiscalizados em 10 Estados, com recolhimento de tributos irrisório e incompatível com o volume de operações.
A gravidade da situação fica ainda mais evidente quando se observa a recente deterioração do orçamento da ANP (Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis). A autorização para despesas discricionárias da agência caiu de R$ 749 milhões em 2013 (valor corrigido pela inflação) para R$ 134 milhões em 2025 (-82%).
Com um caixa reduzido, a instituição teve uma perda expressiva de capacidade de fiscalização e autuação, sendo obrigada a adotar medidas emergenciais para tentar contornar as novas limitações. A redução da capacidade de monitoramento pela agência só amplia a vulnerabilidade do mercado. A boa notícia foi a aprovação no Senado da Lei do Devedor Contumaz, que, pasmem, estava parada há anos no Congresso.
Contextualizando as descobertas da PF à estrutura do mercado de combustíveis nacional, entende-se que a operação Carbono Oculto não é um episódio isolado, mas um sintoma de um modelo disfuncional que cria um incentivo econômico por meio de uma política tributária de alta carga nos combustíveis.
Essa alta e complexa política tributária transforma o setor de combustíveis em um campo minado, no qual operadores legítimos enfrentam riscos desproporcionais e levam ao surgimento de grupos fraudulentos e criminosos que prosperam sob a sombra da opacidade, drenando a receita da União, dos Estados e, principalmente, dos pagadores de impostos.
A discussão sobre a redução de tributos e a simplificação fiscal é uma agenda de segurança jurídica, de competitividade, de governança e de proteção ao consumidor. Enquanto o Brasil mantiver um sistema de alta tributação, fragmentado e opaco, vamos continuar minando a credibilidade do mercado e a eficiência da política energética nacional e incentivando o aparecimento de empresas que operam à margem da Lei.