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Proposta da ANP não distingue devidamente os ativos legados dos novos investimentos, dando margem à duplicidade de remuneração e à elevação das tarifas de transporte

A recente proposta da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para revisar a regulação do transporte de gás natural, reacendeu discussões importantes sobre a estrutura tarifária e a alocação de riscos no setor. Em outros artigos, tenho alertado para os potenciais impactos negativos da mudança, como o aumento artificial de tarifas e a duplicidade na remuneração de ativos. Agora, aprofundo a análise comparando o setor de gás com o elétrico, cujo modelo regulatório é consolidado e transparente há décadas.

No setor elétrico, a governança conta com um planejamento conduzido por instituições, como a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Ministério de Minas e Energia (MME), que definem a expansão da oferta com base em projeções de demanda e critérios técnicos. Os investimentos são viabilizados por leilões públicos, que garantem contratos de longo prazo com remuneração estável e previsível. O risco de demanda, socializado entre os consumidores, reduz a exposição dos agentes e amplia a atratividade do setor. A Aneel, por sua vez, atua com metodologias claras e amplamente debatidas, zelando pela modicidade tarifária e pela segurança jurídica.

Já o setor de gás enfrenta desafios estruturais. A malha de gasodutos foi construída majoritariamente sob contratos antigos, muitos já amortizados, mas que são remunerados como ativos novos. A proposta da ANP não distingue devidamente os ativos legados dos novos investimentos, dando margem à duplicidade de remuneração e à elevação das tarifas de transporte. O planejamento da expansão é fragmentado e os contratos de transporte não oferecem garantias mínimas de receita, deixando o risco de demanda mal distribuído e recaindo, por vezes, sobre o consumidor.

Um dos principais entraves à racionalidade econômica do setor é o conflito de interesses embutido na figura do transportador, que acumula funções operacionais e de planejamento. Sem um operador do gás, o transportador tende a priorizar investimentos que maximizem sua base de ativos e sua remuneração, ainda que não sejam os mais eficientes ou necessários ao sistema. Esse viés compromete a modicidade tarifária e distorce os sinais econômicos para os demais agentes.

Agregar ao escopo do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) a operação do gás seria uma solução. Assim, ficariam claras as funções de operação, planejamento e regulação. O novo operador coordenaria a expansão da malha de transporte, baseado em critérios técnicos e econômicos, e ampliando a eficiência alocativa e a transparência. Para além, haveria a definição precisa da alocação de riscos entre transportadores, carregadores e consumidores, evitando que o custo da ociosidade recaia injustamente sobre o mercado.

Publicado originalmente pelo Estadão.